Por Cynara Menezes
Os analistas de pesquisa têm uma explicação simples para o fato de, na reta final de uma campanha eleitoral, os resultados dos institutos ficarem muito parecidos: a consolidação das intenções de voto reduz as nuances e torna mais homogêneos os grupos de eleitores. Fica mais fácil, portanto, captar as tendências.
O grande lance, o que evidencia a qualidade dos pesquisadores, é acertar quando a corrida das eleições está no seu início e o eleitorado ainda está muito disperso. Ligado ao jornal Folha de S.Paulo e chancelado pela Rede Globo, o Datafolha criou em torno de si a aura de grande reputação. Era como se seus métodos fossem superiores e suas medições, mais confiáveis. Verdadeira ou não, essa suposta superioridade técnica virou, com uma intensidade nunca antes vista em eleições, uma arma contra os rivais. A associação entre o instituto e o jornal provocou uma espécie de caça às bruxas no início do ano. Os alvos foram dois concorrentes mineiros, o Sensus, de Ricardo Guedes, e o Vox Populi, de Marcos Coimbra.
Agora, a menos de um mês da eleição, o Datafolha vê-se enredado na própria armadilha. Depois de uma correção brutal de rumo – em três semanas e meia o instituto saiu de um empate técnico de Dilma com o tucano José Serra para uma acachapante vantagem de 20 pontos porcentuais da petista – é a empresa dirigida pelo sociólogo Mauro Paulino que está na berlinda.
Há uma percepção cristalizada entre a maioria dos especialistas sérios do setor de que, no mínimo, a empresa do Grupo Folha cometeu graves falhas técnicas. Marcus Figueiredo, do igualmente conceituado Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) não mede palavras. Autor da chamada “pesquisa das pesquisas”, que compara os levantamentos das principais companhias do ramo, é categórico: “O Datafolha errou. Demorou mais de um mês para encontrar os eleitores de Dilma. Terá de explicar por quê”.
Entre os quatro grandes, o Datafolha é o único a utilizar a amostragem por “ponto de fluxo”, ou seja, escolhe determinados lugares e aborda os transeuntes. Os demais utilizam a visita em domicílio, com base no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É aí que poderia estar a maior distorção no resultado, que ocorre apenas nos momentos em que a campanha está mais indefinida.
“O método de ‘ponto de fluxo populacional’ é aceito internacionalmente. No entanto, tem um viés que pode, num momento de maior volatilidade entre eleitores, apresentar diferenças”, diz Figueiredo. “Pode afetar esta metodologia o que chamamos de ‘fenômeno de conglomerado’: como utilizam o mesmo ponto de fluxo, os pesquisadores trocam de entrevistados, mas eles continuam iguais, em termos de perfil. O Datafolha estava no mesmo ponto de fluxo, por isso suas pesquisas se repetiam. Provavelmente, ao reorientar os pontos de fluxo, captou o que os outros já haviam captado, a subida de Dilma, que não ocorreu de uma hora para outra, como o instituto diz agora.”
A polêmica entre os institutos de pesquisa começou em fevereiro deste ano. Até então, os números apresentados entre todos eram bastante similares. Naquele mês – o Sensus primeiro, e o Vox Populi a seguir – apontaram que Dilma, atrás nas pesquisas, havia empatado com Serra. A partir daí, o distanciamento entre os dois candidatos tornou-se diretamente proporcional às divergências dos números nas pesquisas. Medição após medição, o Sensus e o Vox captaram a subida da petista. Com certo atraso, o Ibope mediu fenômeno semelhante. Só o Datafolha continuava a registrar variações tecnicamente pouco convincentes. O tucano, em alguns momentos, chegou a ampliar sua vantagem. “Serra abre 9 pontos e se isola na frente”, nas palavras do jornal em 27 de março. Coincidência: no fim daquela semana, o tucano decidiria, enfim, anunciar oficialmente sua candidatura à Presidência.
O empate no Datafolha, com Serra 1 ponto porcentual acima, viria na pesquisa publicada em 24 de julho, um mês depois de o Ibope apontar que Dilma passara à frente. Àquela altura, o Vox Populi apontava vantagem em torno de 8 pontos para a candidata de Lula: 41% a 33%.
A “virada” de Dilma sobre o tucano só iria acontecer, para o Datafolha, na pesquisa publicada em 14 de agosto, com a petista a abrir 8 pontos de vantagem. Apenas uma semana depois, Dilma chegaria aos 47%, e Serra cairia para 30%. Desde então, as pesquisas voltaram a ficar parecidas, com em torno de 20% de diferença para a candidata governista.
Engana-se quem achou que isso traria a paz entre Vox Populi e Sensus e Datafolha, em conflito desde que as diferenças nas sondagens apareceram. Os diretores dos dois primeiros sentiram-se atingidos moral e cientificamente pelas críticas, estampadas pelo jornal dono do instituto contra suas pesquisas e ecoadas pelo PSDB e DEM.
Em abril, os tucanos entraram com representação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o Sensus. E obtiveram o direito de entrar na empresa e ter acesso aos questionários tabulados. Guedes, diretor da empresa, recorda que, mesmo antes de ser notificado pelo tribunal a autorizar a entrada de dois representantes do partido na sede da companhia, em Belo Horizonte, um fotógrafo da Folha de S.Paulo já estava a postos à espera dos desdobramentos. Diz ainda que os representantes foram, durante todo o tempo que passaram lá, instruídos ao telefone “por um instituto de pesquisa de São Paulo”. “Eles faziam perguntas típicas de quem é do meio, como: ‘Qual o índice de ponderação utilizado’?”
Depois de suportar meses de tentativas de desqualificação, Coimbra, diretor do Vox e colunista de CartaCapital, resolveu atacar. Em artigo no Correio Braziliense, diário para o qual também escreve, publicou um artigo franco e direto intitulado “Pesquisas polêmicas”.
No texto, Coimbra desafia o Datafolha a comprovar cientificamente a “disparada” de 17 pontos que aponta em sua penúltima pesquisa – na última, divulgada na quinta-feira 26, a ex-ministra já aparecia 20 pontos à frente. “Como explicar que Dilma tivesse crescido 18 pontos em 27 dias, saindo de uma desvantagem para Serra de 1 ponto, em 23 de julho, para 17 pontos de frente, em 20 de agosto? Que ganhasse 24 milhões de eleitores no perío-do, à taxa de quase 1 milhão ao dia?”
O cientista político apontou como “fantasiosa” a explicação dada pelos diretores do instituto de que tal “disparada” se dera em virtude da estreia de Dilma no horário gratuito de televisão. “Três dias de propaganda eleitoral nunca teriam esse impacto.” De fato, no dia seguinte à divulgação da pesquisa, a própria Folha publicaria um texto em que dizia ser maior o potencial de Dilma “entre quem não viu a propaganda” no horário eleitoral. Segundo a reportagem, 66% do eleitorado ainda não havia assistido à propaganda da petista, parcela “formada sobretudo pelos menos escolarizados e pelos mais pobres, segmentos em que a candidata se sai melhor”.
A CartaCapital Coimbra considerou “estapafúrdias” as explicações dadas pelo concorrente para a subida de 9 pontos de Serra em julho, detectada apenas pelo instituto paulista. “Eles diziam que Serra cresceu porque tinha parado de chover em São Paulo, mas aí a gente olhava os dados e via que era no Sul que ele supostamente tinha subido. Uma coisa sem pé nem cabeça”, critica Coimbra, que diz não ter razão alguma para suspeitar de manipulação dos números, mas afirma ver dificuldade do instituto em aceitar que suas pesquisas naquele momento, comparadas às demais, não faziam sentido.
“Antes de fevereiro, estava tudo mais ou menos emparelhado. O processo de crescimento da Dilma vinha acontecendo, sem perder velocidade, à medida que ia aumentando o conhecimento do nome dela e a associação com o presidente Lula”, diz o diretor do Vox Populi. “Só eles podem responder onde erraram, mas o que fica nítido é que o Data-folha começa a sair então de sua própria trajetória. A evolução natural dos dados apontava para outro resultado. Ou seja, os dados do Datafolha começaram a ficar não só diferentes dos nossos, como dos deles mesmos. E, em vez de se perguntar o que havia de errado com os dados deles, passaram a dizer que os outros é que estavam equivocados. Uma posição arrogante e tola.”
Na verdade, ainda que Coimbra não o diga, a ofensiva fez mais do que apenas sugerir equívocos nos concorrentes. O que se insinuou, a ponto de estimular ações judiciais dos tucanos, foi que as pesquisas a detectar o crescimento da petista tinham um viés com o intuito de favorecer a candidatura da situação.
Tanto o Vox Populi quanto o Sensus queixam-se da utilização do jornal pelo Datafolha, embora, na tentativa de explicar as distorções, recentemente a ombudsman da Folha tenha salientado que o instituto “é uma empresa à parte”. Quando, em abril, o Vox apontava o crescimento de Dilma, duas notas publicadas pela coluna “Painel” da Folha questionavam a metodologia utilizada pelo instituto mineiro, com procedimentos que seriam conhecidos “por distorcer resultados”. Contra o Sensus, o jornal tentou colocar em xeque a metodologia, os contratantes, e repercutiu frases de representantes do PSDB que acusa-vam o instituto de “distorcer” dados.
A suposta distorção consistia no fato de o pessoal de Guedes e Coimbra estimular os entrevistados a fazer associações políticas – Dilma e Lula, a mais notória. O que se pergunta é o seguinte: se esta será uma eleição plebiscitária e se a figura do presidente da República é tão central no processo, que tipo de levantamento teria mais potencial para “distorcer” a realidade: o que associava a ex-ministra a Lula ou o que escondia essa relação?
Nos bastidores, os diretores dos institutos trocavam acusações durante as reuniões cada vez mais tensas da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisas (Abep). No congresso da entidade, em março, outro diretor do Vox Populi, João Francisco Meira, colocou em debate a possibilidade de a eleição acabar no primeiro turno, o que desagradou a Paulino. O diretor do Datafolha enviou posteriormente e-mail ao grupo afirmando ser um “desserviço” à pesquisa no Brasil que se fizessem projeções nesse sentido.
Meira reagiu, também em e-mail. Segundo ele, o Datafolha replicava o comportamento do jornal da mesma empresa, “de ser o dono da verdade”. Em um encontro da Abep no começo de abril, os diretores das duas empresas voltaram a se enfrentar. “Acho absurdo a Folha, que possui um instituto de opinião, promover a desqualificação dos concorrentes”, disse Meira, apoiado por Guedes, que apontou “erros” na metodologia do concorrente paulista. A relação geral azedou.
Sempre houve, por parte dos demais, inclusive o Ibope, incômodo com a postura do Datafolha de se defender de questionamentos com o argumento de ser “o único” a não vender pesquisas eleitorais para partidos políticos e instituições financeiras. “Como se isso nos fizesse moralmente inferiores”, reclama Coimbra. “Eles acham que os partidos são grupos de bandidos? Eu me orgulho de fazer pesquisas para políticos, para multinacionais. Agora que nossas projeções se confirmaram, eles deviam nos pedir desculpas”, diz Guedes. Márcia Cavallari, do Ibope, reforça: “Fazemos pesquisa para todo mundo que nos contrata. Não é isso que faz de um instituto mais ou menos idôneo, e sim sua credibilidade”.
O portal iG, que, em parceria com a TV Bandeirantes, divulga os levantamentos do Vox Populi, publicou, no sábado 21, um texto onde questiona a metodologia do Datafolha e a insinuação de que os outros institutos não seriam confiáveis por fazerem pesquisas para partidos e empresas. “De duas, uma. Ou a frase não quer dizer nada e é repetida sem necessidade – ou quer dizer sim, e visa sugerir, de alguma forma, que o instituto que aceita políticos ou bancos como clientes aceitaria também modificar o resultado final da pesquisa, distorcendo a realidade encontrada pelos entrevistadores. Se for esse o caso, estaríamos diante de uma acusação gravíssima. Em vez de diferenças metodológicas aceitáveis do ponto de vista científico, haveria um fosso moral entre o Datafolha e seus concorrentes”, publicou o iG.
O diretor-executivo de jornalismo da Band, Fernando Mitre, enviou declaração a CartaCapital em que destaca o fato de as pesquisas do Vox Populi divulgadas pela emissora terem antecipado as tendências. “A Band contratou as pesquisas do Instituto Vox Populi, mas não deixou de divulgar as demais. Note-se que os resultados dados inicialmente pelo Vox começaram a aparecer, mais tarde, nas outras pesquisas. Hoje, estão praticamente igualadas, com pequenas oscilações. Quando os resultados eram muito diferentes, chegamos a fazer programas especiais exatamente sobre essas diferenças, abordando também questões metodológicas. É claro que temos dado destaque ao fato de que nossas pesquisas exclusivas anteciparam os resultados que estão aí.”
Em termos técnicos, os erros metodológicos apontados pelos outros institutos no Datafolha, para que tenha chegado a um resultado tão discrepante dos demais a certa altura da campanha, dizem respeito primeiro ao uso de pontos de fluxo populacional em detrimento do domiciliar, como salientou Figueiredo. Mas há outras questões. O Datafolha não iria na zona rural, onde sabidamente o governo é bem avaliado e Dilma liderava desde janeiro. Além disso, ao pedir o telefone aos entrevistados para a checagem, reduziria o espectro econômico da amostragem, já que apenas 45% dos domicílios brasileiros possuem aparelho fixo e 75%, celular. Isso tornaria o perfil do entrevistado um pouco mais elitizado e menos representativo da totalidade dos eleitores. Sabe-se que os mais ricos e com maior escolaridade tendem a definir seu voto mais cedo. Procurado, Paulino não atendeu ao pedido de entrevista de CartaCapital.
Um dos pontos que saltam aos olhos não de especialistas, mas do leitor da Folha, é que possivelmente o instituto, no mínimo, subestimou o potencial de transferência de votos do presidente Lula. Em setembro de 2008, o Sensus previa que 44,1% dos eleitores votariam no candidato apontado por Lula para as eleições municipais daquele ano. Já o Datafolha estimava, em dezembro do ano passado, que só 15% dos eleitores estariam dispostos a votar para presidente na candidata dele. Quando a diferença de Dilma para Serra alcançou 8 pontos pelos dados do próprio instituto, Paulino escreveu que a transferência chegara “no teto”.
“A pesquisa Datafolha divulgada hoje (14 de agosto) é um divisor de águas. Além de trazer, pela primeira vez, a liderança isolada de Dilma Rousseff na disputa presidencial, marca uma redução importante da influência do presidente Lula como cabo eleitoral de sua ex-ministra a partir daqui”, anotaram Paulino, diretor-geral, e Alessandro Janoni, diretor de pesquisas do instituto. “Daqui em diante, o conjunto a ser disputado é o dos que até cogitam votar em um candidato apoiado por Lula, mas não estão certos disso. Hoje, eles são 22% do eleitorado e votam mais em Serra (36%) do que em Dilma (31%). Para esses, o desempenho do presidente não é suficiente para convencê-los a eleger sua ex-ministra.” A previsão, como mostra o último levantamento do próprio instituto, também não se concretizou.
Não foi, porém, o Datafolha o único a subestimar o potencial de transferência de Lula. Um ano atrás, o presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, chegou a dar entrevista na qual garantia que o presidente não faria o sucessor e que sua candidata teria, no máximo, 20% dos votos. Errou feio e voltou atrás. Em fevereiro, afirmava não se surpreender se Dilma ganhasse. No início do mês, dava como certa a vitória da petista no primeiro turno.
Em boa medida, essa “guerra” entre os institutos serviu para derrubar certos mitos sobre a qualidade das empresas. Na opinião isenta do professor Marcos Figueiredo, do Iuperjm, “todos os quatro grandes, pelo que temos visto em nossas análises, estão todos muito bem, são confiáveis e absolutamente equivalentes.” Quem pensa – ou pensava diferente – apenas fazia coro com a torcida organizada.
fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-batalha-dos-numeros-2