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domingo, 28 de março de 2010

Formação para o mercado: Quando a formação é refém do mercado




Por Rodolfo Avelino

A dificuldade de se encontrar profissionais capacitados na plataforma livre é um questionamento recorrente quando se propõe a utilização ou somente a experimentação de novas tecnologias. De um modo geral, as escolas, centros de treinamentos e universidades reproduzem bons técnicos/analistas de “produtos/marcas”. Formar profissionais em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) pressupõe que os educandos, de posse desse conhecimento, possam não somente operar os produtos de marcas multinacionais, mas também ter o interesse em questioná-los, propor mudanças e melhorias, criar relações entre seus conhecimentos prévios e a solução de problemas complexos do seu cotidiano. É necessário um grande movimento para que essas entidades promovam um ambiente favorável para a construção de competências, habilidades e, consequentemente, de novas tecnologias.

O desenvolvimento industrial e tecnológico trouxe uma série de consequências sociais que refletiram na situação educacional, entre elas a mudança nos “meios de produção”, com a desvalorização do capital pelos recursos naturais e força de trabalho, para uma grande valorização dos bens intangíveis, como o conhecimento.

As universidades e escolas de qualificação profissional ainda se orientam segundo uma organização e uma metodologia de ensino de décadas atrás. Se comportam como grandes centros de treinamento, para suprir as demandas técnicas do mercado. Mercado este que cada vez mais pressiona os currículos das universidades e escolas, para atender suas necessidades operacionais. Com essa nova organização, criou-se a cultura do imediatismo e do resultado rápido por parte dos educandos.

Por outro lado, algumas organizações não governamentais que se propõem a oferecer treinamentos e cursos de qualificação profissional na área de TI também replicam o que o mercado já faz há muito tempo, oferecendo treinamentos no padrão cópia e cola (taylorista-fordista), pelo qual os cursos não estimulam o pensar, o empreendedorismo e a sustentabilidade local. Essas entidades sociais sempre tiveram como missão a busca pela justiça social e pelo convívio em comunidade. Mas por que se permitem oferecer cursos contra seus próprios ideais?

Diante desse cenário, “mercado e resultado rápido”, a formação é condicionada a conhecimentos e habilidades específicas, que não modificam a atitude em relação à pesquisa. Nesse sentido, cada vez mais ferramentas com códigos pré-configurados abstraem conhecimentos e conceitos tecnológicos, criando uma sensação no educando de domínio sobre a tecnologia. No entanto, cria-se uma dependência dessas ferramentas e rotinas.

Quando a formação se apoia principalmente nessas ferramentas automatizadas, resultados de “montagens” e configuração de sistemas, as tarefas se tornam fáceis para os educandos. Pouco se cria e a prática profissional se torna refém de roteiros pré-determinados, onde o educando não é estimulado a entender os conceitos e padrões técnicos, e sua preparação não promove situações problemas. Nesse ambiente de aprendizagem, fica mais difícil para os educandos apreciarem o valor dos conceitos, da análise, a compreensão, e tomarem decisões sobre a realidade que os cerca.

Rodolfo Avelino é professor da Universidade Cidade de São Paulo,
educador da ONG Coletivo Digital e componente da organização do
Congresso Internacional de Software Livre (Conisli).

Materia públicada originalmente no site http://www.arede.inf.br/inclusao/edicoes-anteriores/157-edicao-no56-marco-de-2010/2757-opiniao e autorizada reprodução neste Blog pelo autor.

domingo, 21 de março de 2010

Impactos Sociais: trabalho e renda, parâmetros para urbanização de favelas e reabilitação estão entre os desdobramentos

As grandes cidades brasileiras são marcadas pela desigualdade socioeconômica e de infra-estrutura urbana, combinada com o crescimento de assentamentos precários ou irregulares, em áreas de risco, degradadas, de preservação ambiental ou de expansão urbana. Estimativas indicam que a informalidade corresponde a 50% do crescimento das metrópoles, evidenciando as deficiências dos processos de gestão, planejamento e das políticas voltadas ao desenvolvimento urbano face as demandas da população.

O déficit habitacional, estimado em quase 8 milhões de moradias, é um dos sérios problemas do país. Ao mesmo tempo que faltam moradias, estima-se que 5 milhões de residências estão fechadas, sem uso ou ocupação. Além disso, quando o critério é qualidade da habitação, o déficit habitacional brasileiro cresce consideravelmente.

Estudos sobre o mercado informal de terras nas grandes metrópoles brasileiras, sobre parâmetros para urbanização de áreas de favelas e para reabilitação de moradias nos centros urbanos são alguns dos exemplos da contribuição do Programa Habitare na produção de referenciais conceituais, metodológicos ou técnicos para a implementação de ações e políticas públicas no campo da habitação de interesse social e do desenvolvimento urbano.


Cinco cidades brasileiras estão entre as 20 mais desiguais do mundo





Cinco cidades brasileiras estão entre as 20 mais desiguais do mundo. Relatório apresentado hoje, na abertura do 5º Forum Urbano Mundial da Organização das Nações Unidas (ONU), no Rio, revela que Goiânia (10ª), Belo Horizonte (13ª), Fortaleza (13ª), Brasília (16ª) e Curitiba (17ª) são as que apresentam as maiores diferenças de renda entre ricos e pobres no País. O documento "O Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano Dividido" também informa que o Brasil é o país com a maior distância social na América Latina.
O Rio de Janeiro, na 28ª posição, e São Paulo, na 39ª, também são cidades consideradas com alto índice de desigualdade, de acordo com o relatório da ONU. Nove municípios na África do Sul lideram o ranking. As capitais da Nigéria, Etiópia, Colômbia, Quênia e Lesoto também estão entre as mais desiguais. No total, 138 cidades de 63 países em desenvolvimento foram analisadas. O relatório baseia suas conclusões no coeficiente Gini - cujos indicadores medem a concentração de renda de um país.
Na avaliação do coordenador do relatório e diretor do Centro de Estudos e Monitoramentos das Cidades do Programa da ONU para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), o mexicano Eduardo Lopez Moreno, existe vínculo direto entre desigualdade e criminalidade. Mais do que custos sociais, o abismo entre ricos e pobres também provoca prejuízos econômicos.
"Estatisticamente falando, existe sim um vínculo. É muito possível que a cidade mais desigual vai gerar muito mais fácil distúrbios e problemas sociais. As autoridades desses países vão deslocar recursos que deveriam ir para investimentos para conter esses movimentos sociais. O custo social acaba se traduzindo em custo econômico", afirmou Moreno.
Favelas
Em termos de favelização, o estudo da ONU apresenta resultados paradoxais para o Brasil. Apesar de ter sido o país que apresentou o maior número absoluto de pessoas que deixaram de viver em condições de favelização na América Latina - 10,4 milhões -, a pesquisa mostrou que o desempenho relativo ficou abaixo dos vizinhos. Enquanto as condições de moradia melhoraram para 16% da população brasileira, este índice ficou em 40,7% na Argentina, 39,7% na Colômbia, 27,6% no México e 21,9% no Peru.
As estimativas apresentadas na pesquisa são de que mais de 227 milhões de pessoas no mundo todo deixaram de viver em regiões faveladas desde o ano 2000. Isso representa uma evolução 2,2 vezes maior do que o estimado nas Metas de Desenvolvimento do Milênio, que haviam estabelecido objetivo de melhorar as condições de habitação de 100 milhões de pessoas até 2020.
"A situação melhorou em dez anos, mas infelizmente no mesmo período o aumento líquido dos pobres urbanos é de 55 milhões", disse Anna Tibaijuka, diretora-executiva do ONU-Habitat.
De acordo com a metodologia da pesquisa, deixar de viver em condição de favelização não significa necessariamente mudança de residência ou remoção de comunidade. Acesso a saneamento básico e água potável, o material utilizado nas moradias e a densidade das residências são os fatores para avaliar se uma região é ou não favelada.

Veja a pesquisa na integra: Clique Aqui!

Para ouvir a entrevista Clique Aqui!

domingo, 7 de março de 2010

Mulher e Poder



foto de Vinícius Antunes da Silva

Dei uma olhada por ai e em muitos sites, encontrei textos e comentários comemorativos e ou explicativos acerca do Dia Internacional da Mulher. Não quis seguir pelo mesmo caminho, e procurei algo que abordasse a situação da mulher na atualidade, não em relação as suas conquistas e ou lutas em si, mais que fosse no cerne da questão do aspecto relacional em que se dá este debate e movimento, ou seja as relações de poder. Assim acabei encontrando no site da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres -www.presidencia.gov.br/spmulheres, a revista do Observatório Brasil de Igualdade e Gênero de onde retirei o texto abaixo, que trata justamente de "Mulher e Poder". Espero que tenham uma boa leitura e comentem no blog.

Atenciosamente,
José Adriano M C Marinho

Céli Regina Jardim Pinto
1.Professora do Departamento de História UFRGS, Doutora em Ciência Política
2.Todas as traduções foram feitas por mim para uso exclusivo neste texto.

Meu objetivo nesta comunicação é fazer uma reflexão sobre o tema mulher e poder a partir de duas perspectivas que estão estreitamente relacionadas: a primeira perspectiva diz respeito a questões mais concretas do binômio mulher poder e concerne à posição das mulheres no espaço público, mais especificamente na arena da luta política. A segunda perspectiva refere-se ao binômio de uma forma mais teórica, buscando embasamento para propor questões para reflexão sobre este binômio que parece mais um enigma. Todo o argumento que tratarei de desenvolver tem como foco central de preocupação a questão brasileira.
Uma das questões mais centrais quando o tema é a presença da mulher na arena pública de decisão em termos gerais ou na política é a seguinte: que mulheres queremos nos cenários políticos? Todas as mulheres, independente de classe, posição política, comprometimento comas questões de reconhecimento das minorias sem poder? Ou estamos lutando para elegermos nos parlamentos e nas posições chaves de poder, mulheres feministas que defendam as grandes causas do movimento?
A militância feminista, assim com a militância de outros movimentos sociais, como negros e gays, tende a responder afirmativamente a segunda parte da questão e serem muito evasivos em relação à primeira, com o argumento que mulheres que não se reconhecem como sujeitos políticos não lutam pelas causas das mulheres em geral. Mesmo que a assertiva seja verdadeira, gostaria de partir de uma outra perspectiva e afirmar que a simples presença de mulheres como vitoriosas, sejam elas feministas ou não, em um quadro maduro de concorrência eleitoral, é muito revelador da posição ocupada pela mulher no espaço público da sociedade. Em países onde o movimento feminista teve uma história longa com muita visibilidade e com vitórias expressivas no campo dos direitos das mulheres, há um número importante de mulheres na disputa eleitoral e nos cargos legislativos, executivos e judiciários. Todavia, esta presença não garante que as mulheres tenham se eleito com plataformas feministas ou sejam feministas. Mesmo assim é muito mais provável que as demandas por direitos das mulheres sejam defendidas por mulheres do que por homens, independente da posição política, ideológica e mesmo de inserção no movimento feminista. Se a metade dos 513 deputados da Câmara Federal brasileira fosse de mulheres certamente o tema do aborto teria uma presença muito maior e um debate de qualidade muito diferenciada nos debates parlamentares, até porque este cenário tão hipotético revelaria um campo de forças muito distinto do que existe hoje entre homens e mulheres. Iris Young é afirmativa neste ponto. Discutindo seu conceito de perspectiva (que eu desenvolverei mais tarde neste texto) ela afirma: “Não é muito comum para pessoas sem atributos descritivos representarem uma perspectiva (...). Um homem asiático americano que cresceu em um bairro predominantemente afro-americano, que tem muitos amigos afro-americanos e que trabalha em um serviço comunitário com afroamericanos, por exemplo, pode ser capaz de
representar uma perspectiva afro-americana em muitas discussões, mas a maioria dos homens asiáticos americanos não poderia, porque eles são muito diferentemente posicionados” (Young,2000;148) A cientista política Anne Phillip, por sua parte, tem uma reflexão muito sofisticada sobre relação de presença com a ideia no campo político. É sua tese que a ideia pode sobreviver sem a presença, isto é, pode haver defensores do feminismo no parlamento sem mulheres, mas que tal situação é rara e limitada. São suas as palavras: “quando a política das idéias é tomada isoladamente do que eu chamarei política de presença, ela não dá conta adequadamente da experiência daqueles grupos sociais que, por virtude de sua raça, etnicidade, religião, gênero têm sido excluídos do processo democrático. A inclusão política tem sido cada vez mais – eu acredito acertadamente – vista em termos de que pode ser concretizada somente por política de presença.” (Phillips, 1996;146).
Retomando a questão inicial, podemos identificar quatro cenários da mulher na arena política: 1) sem idéia, nem presença; 2) com ideia, sem presença; 3) sem idéia, com presença; 4) com idéia e com presença. Para meus propósitos, vou permanecer com os dois últimos cenários e afirmar que eles são igualmente importantes para a questão da mulher, são complementares e permeáveis um ao outro. Neste momento, gostaria de focar uma questão mais ampla, que reputo básica para o entendimento da problemática que estou aqui tratando: as relações de poder em si. Permitam me afirmar, como ponto de partida, que o entendimento analítico de como estas relações funcionam possibilita um aporte mais realista à questão específica em pauta. Gostaria de colocar a questão da relação mulher e poder a partir de três perspectivas: a primeira diz respeito à posição relativa da mulher na estrutura de dominação, e, para tal, assumirei a existência de um sujeito unitário mulher em contraposição a um sujeito unitário homem. Esta é uma simplificação grosseira que eu plenamente reconheço, mas que mantenho porque ela me permite discutir a questão do poder na sociedade moderna e chegar a alguns pontos, que reputo fundamentais para o que estou discutindo aqui.
A segunda perspectiva diz respeito à pretensão de poder da mulher na sociedade moderna. A questão que me norteia neste momento é a seguinte: a razão pela qual a mulher tem presença tão pequena nos postos de poder político (o momento mais stricto sensu do poder) estaria na resposta à primeira questão? E a terceira perspectiva diz respeito a uma questão central de representação: as mulheres empoderadas têm construído uma identificação com as mulheres em geral capaz de as reconstruí-las como sujeitos de poder. Em outros termos, capaz de empoderá-las. Qual é a aproximação entre as mulheres empoderadas e as mulheres que se pretende empoderar? Em outra oportunidade, discutindo o binômio inclusão-exclusão, me vali de um texto de Foucault para estudar formas de exercício de poder (Pinto, 1999). Trata-se da aula no Collège de France de 15 de janeiro de 1975. Nela, Foucault exemplifi ca, historicamente, dois modos
de exercício de poder: o que se constituiu frente à tentativa de controlar a lepra e o que se constituiu frente à peste bubônica, ambos na Europa do fi m do medievo. Foucault, no primeiro caso, afirma que se excluiu, no segundo se incluiu. Primeiro, descreve a ação em relação à lepra na Idade Média: “A exclusão da lepra era uma prática social que comportava uma segregação rigorosa, um colocar a distância, uma regra de não contato entre um indivíduo (ou grupo de indivíduos) e um outro. A rejeição destes indivíduos em um mundo exterior, confuso, para lá dos muros da cidade, para lá dos limites da comunidade.” (Foucault, 1999;.41). Em contraposição, descreve a ação contra a peste: “A cidade em estado de peste – (...) foi dividida em distritos, os distritos foram divididos em quarteirões, e dentro destes quarteirões foram isoladas as ruas e havia em cada rua os vigilantes, em cada quarteirão os inspetores, em cada distrito e na própria cidade havia um governador eleito para este fi m (...)“. Em relação a este segundo tipo de exercício de poder, Foucault afirma que “não se trata mais de uma exclusão, se trata de uma quarentena, não se trata mais de caçar, se trata, ao contrário, de estabelecer, de fixar, de presenças esquadrinhadas. Não é rejeição, mas inclusão.” (Foucault,1999;.43). O texto de Foucault é uma forte metáfora para quase todas as formas de poder presentes no mundo contemporâneo. Se tomarmos a posição da mulher no mundo público (deixarei de fora a questão das relações no mundo privado, no que pese muito importante, mas não fundamental para o meu argumento neste momento), as metáforas são muito valiosas. Dos gineceus coloniais até as exclusões jurídicas na primeira constituição republicana, a metáfora da lepra parece dar conta da teia de relações de poder onde a mulher brasileira se encontrava. Ao ser confinada à casa, paradoxalmente, a mulher era expulsa dos muros da cidade, entre os quais o mundo público se conformava. Ela, simplesmente, não existia. Quando a constituição de 1891 estabelece que todos os cidadãos brasileiros alfabetizados e maiores de 18 anos eram eleitores, ficou claro para o conjunto da população de homens e mulheres e para o regramento jurídico do país que as mulheres não poderiam votar. O direito ao voto, como sabemos, só foi obtido em 1932. Não se citou a mulher em 1891, não se lhe prescreveu limites, simplesmente se excluiu, não se reconheceu sua existência. A partir de 1932, e vou usar esta data como poderia usar outras, mas tenho bastante convicção que esta é uma data muito significativa, a mulher começa a aparecer na ordem da dominação, no mundo público como uma persona que deveria ser controlada, a ela foram atribuídos lugares permitidos e lugares proibidos. Estaria incluída em alguns discursos e excluída de outros. Porque isto acontece? Parece-me que por força de dois vetores: pela dinâmica da construção recente do estado nacional no Brasil e do próprio capitalismo e pela força contrária construída pela luta das mulheres em geral e do feminismo em particular. Dos lugares proibidos, certamente o espaço da política é o mais claramente proibido e, por vias de conseqüência, o mais difícil de romper. Por que era o mais claramente proibido? Por que o é ainda hoje? Parece-me que há dois motivos, um decorrente do outro, que possuem uma perenidade surpreendente e que até hoje devem ser considerados quando se pensa na imensa dificuldade da entrada da mulher na política no Brasil. O primeiro é o imenso poder pessoal que adquirem os membros de parlamentos e governos. Este poder pessoal não tem correspondência necessária ao poder político, mas é fundamental na reprodução de ordens hierárquicas presentes na sociedade brasileira: de classe; de gênero; de etnia entre outras. As razões deste poder pessoal são complexas e têm como base a própria hierarquia da sociedade brasileira, que historicamente legitimou a desigualdade tanto dos mais pobres como dos mais ricos, tanto dos despoderados como dos poderosos.
No Brasil, não existem instâncias que tornem todos os seus cidadãos e cidadãs iguais em direitos e deveres de fato. Há um fosso entre as elites que se sentem desiguais no sentido de se arvorarem direitos especiais e as camadas populares que se sentem desiguais, no sentido de não perceberem seus direitos e os vivenciarem, muitas vezes, como favores. Estas elites inicialmente econômicas e sociais, depois acrescidas das elites sindicais, acadêmicas, entre outras, usufruem e reproduzem estas “desigualdades para cima” e protegem os limites dos espaços de exercício de poder. A entrada nestes espaços de personas, de grupos que forjaram lugar no espaço público justamente desafiando esta ordem hierárquica, é freada de todas as maneiras. Este espaço de poder tem mostrado uma grande capacidade de conversão de novos membros à sua dinâmica de reprodução de desigualdade, na apropriação, por exemplo, dos bens públicos. Para ter este êxito, deve limitar o acesso aos novos membros. Ao próprio feminismo, foi dado um lugar neste arranjo de dominação. As mulheres feministas podem falar algumas coisas e não outras.
As mulheres não feministas terão poderes outros, porque não feministas. Quando uma mulher fala, sua fala tem uma marca: é a fala de uma mulher; quando uma mulher feminista fala, tem duas marcas, de mulher e de feminista.
recepção destas falas por homens e mulheres tende a ter a mesma característica, é a recepção de uma fala marcada, portanto, particular, em oposição à fala masculina/universal. Se for a fala de uma mulher feminista, é o particular do particular. Mesmo quando as mulheres ultrapassam barreiras pessoais e partidárias e tornam-se candidatas, pesquisas que tenho realizado mostram que estas mulheres não enfatizam nem o fato óbvio de serem mulheres e, portanto, de serem uma novidade, nem tão pouco articulam em suas plataformas com destaque temas presentes nas lutas feministas. Está é uma questão que reputo quase tão fundamental como a ausência per se.
Em 2008, a cidade de Porto Alegre viveu uma experiência eleitoral única na sua história: teve três candidatas à prefeita, todas deputadas federais de grande destaque e tendo, pelo menos duas delas, reais chances de serem eleitas. Em pesquisa realizada a partir dos programas eleitorais gratuitos veiculados na TV e nos programas editados nas páginas da internet, verificou-se uma quase total ausência de referência à condição de mulher das candidatas e a mulher foi a grande ausente no discurso da campanha veiculada na televisão. As razões desta ausência devem ser buscadas tanto na postura das próprias candidatas como na recepção do discurso pelos eleitores e eleitoras. Tendo em vista que as questões referentes aos direitos das mulheres aparecem nos programas escritos de algumas destas candidatas, até de forma bem detalhada, a ausência de qualquer referência a eles no programa eleitoral de TV parece indicar que as candidaturas
não assumem a existência de um número significativo de eleitoras-eleitores que se sensibilizariam com este tipo de problemática. Judith Butler, discutindo o tema da representação, dá uma contribuição muito importante na discussão da presença da mulher na política.
A filósofa norte-americana é categórica em afirmar que não basta indagar e fazer uma análise das condições de reprodução de poder e opressão que estão presentes nas instituições onde as mulheres buscam espaços para a sua liberação. Eu cito: “Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das ‘mulheres’, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação.” (Butler,2003;19). Tal perspectiva é importante de ser considerada, pois o espaço da política institucional representativa não é um espaço novo conquistado (como os Conselhos, Delegacias, Secretarias), mas o espaço do outro que tem de ser rompido, penetrado e transformado. O outro, com esta nova penetração, perdeu sua inviolabilidade, sua clausura, seu espaço intacto de reprodução de discurso de poder: torna-se um outro diferente, ou perde sua identidade, transformando-se em um nós. Buscar emancipação no lugar do outro é uma ação com dificuldades e efeitos muito específicos. Poder-se-ia pensar em um cenário alternativo de construção de novos espaços pautados por novos acordos de vivência, convivência e formas de tomada de decisão que, ao longo do tempo, criariam condições de uma morte por asfixia dos antigos espaços, que definhariam como excrescências ou tradições despoderadas. A título de exercício, poderíamos imaginar a construção de espaços paritários de deliberação pública democraticamente construídos que ocupassem espaços de poder, reduzindo, por exemplo, a tradicional forma de representação liberal. Este processo é complexo e necessita acontecer dentro de uma lógica de soma zero, para não criar enclaves. Butler avança ainda mais em sua análise colocando um outro questionamento central. Para melhor clareza no argumento, cito novamente: “Se alguém ‘é’ mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ‘pessoa’ transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (Butler,2003; 20).
O texto de Butler é provocador e leva a pensar até onde as mulheres, quando saem do privado para enfrentar e/ou construir o público, tornam-se cada vez menos mulher. Note-se bem que não estou aqui a defender a existência de uma mulher essencial, mas de uma mulher que se fez mulher historicamente em uma dialética de dominação e resistência. As mulheres das quais fala Butler reconstroem, no público, esta sua condição primeira de mulher e, ao sair do local de recolhimento (o privado), interagem com outras condições, deixando de ser só mulher. A tese de Butler me permite avançar em duas direções, a primeira no que diz respeito ao que eu estava discutindo anteriormente, a entrada da mulher no cenário político como portadora de uma “identidade” mulher; a segunda, a possibilidade de ver a eleitora também fazendo esta saída do privado para o público, abrindo mão de sua condição de mulher. Afirmaria aqui, a título de tese a ser investigada, que no espaço político, por ser o mais masculino dos espaços, é onde a mulher mais aparece como mulher e mais necessita ser menos mulher para ser candidata e ser eleita. Daí fazer sentido a proposta de Butler: “refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigência de se construir um sujeito do feminismo”. Em que se constituiria uma “perspectiva feminista”? Butler não avança neste tema e a noção de perspectiva tem muita potencialidade na medida em que ela de certa forma liberta personas e movimentos do peso da identidade e da própria sujeição como um momento de recriação do “eu”. Foi Young que abordou a questão da perspectiva com muita profundidade, deixando um importantíssimo legado para a nossa reflexão. Para ela, quem identifica grupo com identidade não vê um aspecto fundamental: “Tal rígida conceptualização de diferenciação de grupo ao mesmo tempo nega as similaridades que muitos membros do grupo têm com aqueles que não pertencem ao grupo e nega os muitos gradientes de diferenciação dentro do grupo” (Young, 2000: 89).
Discutindo o tema da representação, Young identifica três formas através das quais a representação se concretiza: interesse, opinião e perspectiva. Interesse é “o que afeta ou é importante para a perspectiva de vida dos indivíduos ou para os objetivos das organizações”. Tem um fim específico. A opinião é descrita pela autora como: “princípios, valores e prioridades de uma pessoa que condicionam seus julgamentos sobre que políticas devem ser perseguidas e que fins atingidos.” E, finalmente, perspectiva conforma-se a partir de “experiências diferentes, histórias e conhecimento social derivado de suas posições na estrutura social.” Young, quando analisa as possibilidades de representação, está muito preocupada com a questão da diferenciação, tema recorrente em toda sua obra. Para ela, diferenciação é um recurso de poder fundamental que não pode ser combatido em nome de um consenso que se oporia ao conflito. A autora é categórica: “contrária àqueles que pensam que políticas de diferenciação de grupos somente criam divisão e conflito, eu argumento que diferenciação de grupo oferece recursos para um público comunicativo democrático que objetiva a justiça, porque pessoas diferentemente posicionadas têm experiências diferentes e conhecimento social e histórico derivado deste posicionamento que eu chamo de perspectiva” (Young, 2000;136).
Tendo presentes as diversas questões que tentei levantar ao longo desta exposição, passo para a última parte, que denominei “notas para reflexão”. Dividirei este momento final em dois conjuntos de questões. O primeiro conjunto diz respeito à posição da mulher na estrutura de dominação, à possibilidade de determinação por estas características estruturais da ausência da mulher nos espaços de poder, à existência de aproximação entre mulheres empoderadas e não empoderadas. O segundo conjunto constitui-se de questões de caráter mais procedimentais informadas pela discussão que tentei levar a efeito nesta apresentação: 1) a democracia liberal representativa, tal como existe no Brasil, tem potencial para incorporar novos sujeitos?; 2) quais são os limites e possibilidades da reforma política?; 3) quais são os limites e possibilidades de um programa de inclusão política?; 4) quando é imperativo repensar o público como um espaço de emancipação? Em relação ao primeiro conjunto gostaria de pontuar o seguinte:

1.Não há dúvidas de que existe uma estreita relação entre a posição relativa que a mulher ocupa na estrutura de dominação e a sua presença na vida política. No caso específico do Brasil, esta estrutura de dominação tem duas características muito particulares, que provocam efeitos profundos nas formas de participação da mulher na vida pública: uma desigualdade social abismal e uma hierarquia rígida em relação ao acesso aos direitos.
2.Se esta posição da mulher na estrutura de dominação tem efeitos muito evidentes na exclusão da mulher, todavia não pode ser pensada como uma determinação, mas como um dado fundamental a ser tomando em consideração, tanto na análise do problema como na decisão de ações concretas para transformar a posição das mulheres nos espaços de poder. O entendimento do funcionamento destas hierarquias e dos demais condicionantes estruturais possibilita pensar construções estratégicas de políticas que avancem em relação a políticas meramente procedimentalistas.
3.Desde os seus primeiros passos, a razão de ser do movimento feminista foi empoderar as mulheres (mesmo que o conceito tenha sido incorporado como vocabulário muito posteriormente). Se, por uma parte, o movimento logrou conquistas indiscutíveis que atingiram as próprias estruturas de poder no mundo ocidental, por outra parte, tem sido muito tímido em interpelar mulheres para agirem no mundo público e, principalmente, político.

Butler, citada anteriormente, oferece um caminho que acredito promissor para pensar esta situação, quando diz que as mulheres não são só mulheres, ou quando se pergunta se é necessário um sujeito feminista. A presença feminista na arena política é desejável? Ou seria mais uma? Daí que a noção de perspectiva de Young possibilita pensar em formas inovadoras da relação entre feministas e não feministas, entre presença da mulher e presença da mulher que incorpora a idéia. Em relação ao segundo grupo de questões, que chamei de caráter mais procedimental, as idéias que proponho para reflexão são as seguintes:
1.A democracia liberal, tal como existente no Brasil, possui limitações estruturais para incluir novos sujeitos, principalmente pelos limites que impõe à participação. Mas, mesmo tendo em conta estes limites, parece-me que não ocupamos todos os lugares possíveis. Não esgotamos seus limites. Por exemplo, a ausência da mulher na esfera política não pode ser posta unicamente na conta dos limites da democracia liberal.
2.Na atualidade, há uma maligna tendência de ver as reformas políticas como a panacéia para os problemas da política brasileira. As reformas políticas estão focadas em duas questões: moralidade e aumento da eficácia dos agentes políticos. Não cabe aqui discutir se elas atingirão estes objetivos, mas certamente não mudarão em nada a estrutura das relações de poder que afastam as mulheres da esfera política.
3.Tomando como referência as questões até aqui levantadas, penso que urge um programa de inclusão das mulheres na vida política, que não poder ser entendido como confecção de cartilhas ou campanhas publicitárias, mas, e eu estou convencida disto, num programa para dar voz às mulheres, construir espaços para que as mulheres falem. Dar a palavra para as mulheres e só as mulheres podem dar a palavra às mulheres, sem construir novas relações de poder. Esta certamente não é a ação sufi ciente, caminho das pedras, porque o caminho não há, mas certamente é essencial. Não é difícil fazer isto. É daquelas ações que depende da vontade política e de arcar com as conseqüências da desorganização que pode causar. Nós temos humildemente de reconhecer que, como feministas, às vezes encontramos confortáveis casas, que nos acolhem nos quarteirões identificados por Foucault.
4.Finalmente, gostaria de concluir afirmando que é imperativo repensar o espaço público como um espaço de emancipação, diria de emancipações, no plural, do quarteirão no qual a política do controle da peste bubônica tem limitado as mulheres historicamente, no que pese nossas grandes e lutadas vitórias.

Bibliografia:
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).

FOUCAULT, Miche. Les Anormaux. (Paris:Gallimard,1999).

PHILLIPS, Anne, “Dealing with Difference: A Politicis of Ideas, or a Politics of Presence?” In: BENHABIB. Seyla. Democracy and Difference. (Princenton: Princeton University Press, 1996).

PINTO, Céli R. J. “Foucault e as Constituições Brasileiras: quando a lepra e a peste se encontram com os nossos excluídos”. In:Educação e Realidade, v.24 n.2 jul/dez 1999.

YOUNG, Iris. Inclusion and Democracy. ( Oxford: Oxford University Press, 2000).

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